"Pergunte e 11 em cada 10 pessoas responderão que odeiam hipocrisia.
E todas elas estarão sendo hipócritas nesse momento.
O amor, a bondade, a ideia de altruísmo – todos esses sentimentos nobres são o que fazem esta vida parecer tolerável. Mas são os sentimentos ruins como a cobiça, a raiva, a inveja que fazem o mundo andar. É a ganância que faz alguém querer mais e mais dinheiro, movimentando as forças produtivas e gerando riquezas. É uma variedade da inveja que faz uma pessoa querer ser melhor que outra e, apesar de razões tão vis, eventualmente tornar o mundo um pouco melhor com seus actos. É a preguiça, aliada à inventividade, que torna o mundo mais confortável, como bem sabe aquele preguiçoso cansado de levantar para mudar o canal da TV que inventou o controle remoto.
Falta aos sinceros e francos a coragem de admitir que a hipocrisia, essa atitude tão vilipendiada, é fundamental e necessária à vida quotidiana.
Imagine, minha senhora, sua vida sem pequenas doses diárias de hipocrisia. Você pergunta se sua melhor amiga gostou do seu novo penteado. Ela, pessoa franca e sincera, qualidades das quais tem orgulho e não cansa de anunciar ao mundo, diz que está horroroso - a propósito, o seu cabelo é horrível, mesmo, não tem penteado que dê jeito; e olha, já que falamos nisso, seu marido está saindo com a Lurdes.
Ou você, senhor letrado, que escreve um poema do qual se orgulha e aquele mestre, a quem você admira e respeita, diz que ele é irremediavelmente medíocre, e extremamente parecido com um dos piores poemas de Verlaine - mas você não é plagiário, porque nem conhecia o tal sujeito: você é só ignorante, mesmo.
Por outro lado, imagine a senhorinha recém-casada com um homem a quem ama acima de todas as coisas, e que perguntada por ele, sequioso de aprovação e desejoso de agradar, a respeito de seu desempenho sexual pífio, responde que sim, que ele a completa e que aquela mixaria arfante é o melhor sexo que ela já fez. E um casamento é salvo por uma pequena mentira.
Os exemplos podem seguir ad aeternum. Muitas vezes somos hipócritas por motivos nobres, embora geralmente o sejamos por covardia e sabedoria; mas o resultado continua sendo hipocrisia, atitude que julgamos ver restritas aos Uriah Heep da vida.
Ah, quantos assassinatos a hipocrisia já conseguiu evitar. E apesar de toda a nossa ingratidão, da nossa recusa em reconhecer seus méritos, essa atitude salvou mais vidas que as Belas Artes, tão elogiadas e admiradas como exemplos do que de melhor o homem pode fazer. Guernica, tão nobre em seus ideais, não salvou uma só vida; mas pequenas mentiras salvam milhares a cada dia.
Admitamos todos, com o máximo de alegria possível diante do esmaecimento dos nossos sonhos de pureza: sem hipocrisia, o mundo acabaria em uma semana.
A hipocrisia é a base sobre a qual se sustenta a pólis, em que opiniões contrárias e muitas vezes excludentes precisam conviver com um mínimo de harmonia. É a sua porção, hypocrite lecteur, seja ela grande ou pequena, que lhe permite escutar e tentar aceitar a opinião de outra pessoa, mesmo quando você está convencido de que está certo e aquilo que o outro está falando é um punhado de estultices que poderiam muito bem ter saído da bundinha de um jumento.
Por mais que gostemos de alardear e mesmo cultivar nossa própria integridade pessoal, é a hipocrisia que, insidiosamente, subverte a lei do mais forte, criando uma base mínima de igualdade sobre a qual ideias e opiniões podem conviver.
Portanto, agradeçamos a Deus - ou ao diabo - a invenção dessa arte milenar e salvadora. Sejamos realmente sinceros uma vez na vida, e continuemos hipócritas."
Por Rafael Galvão em 14 de Setembro de 2003
in http://www.rafael.galvao.org
09 agosto, 2007
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